Deschefiando

Ato de cozinhar e a procura de melhorar o que está sendo consumido caminham junto com o ser o humano desde a sua necessidade de alimentação, dando mais e novo sabor ou transformando aquele alimento abrindo assim diversas possibilidades de consumo. Gosto, segundo Montanari (2008, p.11), é um produto cultural que é o resultado da realidade coletiva e partilhável onde as excelências se destacam a partir de uma complexa construção histórica. A comida é um processo de exposição de um estilo de vida, assim como um modo de se relacionar e construir a comunicação, à medida que a mesma permite que uma cultura seja conhecida, fazendo assim com que os alimentos se transformem em grandes símbolos de identidade cultural.

No momento que o alimento ganha incrementos, ele constrói sua comunicação através das suas características de sofisticação, intensificando assim, os processos de midiatização do universo culinário e gastronômico que faz parte. Diante de tanto anseio por se comer de forma sofisticada, começa a aparecer inúmeras revistas e livros de receitas e, a partir de 1963 aparece, nos EUA, o primeiro programa de TV que ensina donas de casa a cozinharem iguais aos franceses – já que eles são os pioneiros a cozinhar de forma sofisticada (https://www1.folha.uol.com.br/comida/2012/08/1137384-biografo-relembra-julia-child-chef-que-conquistou-as-donas-de-casa-nos-eua.shtml julia https://www.google.com.br/search?q=julia+child+durante+grava%C3%A7%C3%A3o+de+programa+de+tv&tbm=isch&source=iu&ictx=1&fir=-52bN74-6hQ1gM%253A%252C98ToDU9MjJbdEM%252C_&usg=__lJej6bGM3HmQ4CnR6W0BJqxB13Q%3D&sa=X&ved=0ahUKEwibjJGPzu3bAhUKHJAKHUk4C1oQ9QEIMzAD#imgrc=-52bN74-6hQ1gM). Com o movimento moderno o cozinheiro começa a ganhar invisibilidade comunicativa e então vai consolidando a figura do chef como alguém que se aproxima de um gênio artístico.

Junto a isso encontramos, nos séculos passados, diversos cozinheiros que viveram na Europa antiga e que deram uma nova cara à gastronomia, inovando e organizando a cozinha. August Escoffier foi um desses cozinheiros que revolucionou a cozinha estabelecendo as brigadas, onde cada cozinheiro fica responsável por produtos específicos da sua praça (https://indopracozinha.com/2014/12/04/dialeto-da-cozinha/) e por executar preparações de acordo com sua praça. Esse modelo é totalmente hierarquizado e tem como base o militarismo, exigindo uma conduta muito séria dentro da cozinha e o respeito máximo aos superiores, principalmente ao chef.

Nos tempos de hoje as cozinhas ainda são organizadas por praças, pois facilitam o trabalho e a dinâmica do restaurante, mas em contrapartida temos a presença muitas vezes de chefs abusivos, que humilham seus cozinheiros e péssimas condições para o trabalho. Então para desmistificar todo esse glamour que é nos vendido pela mídia, vamos começar falando o que é ser chef através do vídeo em que Atala – chef renomado (https://www.youtube.com/watch?v=AFLHpqT7wEI). O discurso de Atala sobre a efemeridade do “ser” chef se repete pelos restaurantes à dentro. Na prática, o que acontece frequentemente é chef berrando “chef não erra!”, “me chame de chef!” – deve fazer bem para o ego-, jogando panela no chão e fazendo aquela presepada, como se diz aqui na Bahia. E por falar de discordância entre discurso e ação o Atala, que representa o Brasil na segunda temporada da série Chef’s Table da Netflix (https://www.netflix.com/watch/80075155?trackId=200257859) defendendo, com unhas e dentes, os pequenos produtores virou o garoto propaganda da Seara. No vídeo institucional de divulgação da Parceria entre Seara e Atala (https://www.youtube.com/watch?v=Z-Dj0V8VGl8  ele afirma que acompanhou todo o processo da indústria e pôde constatar que a proteína vendida pela Seara é uma proteína de qualidade, com baixíssimo ou nenhum impacto ambiental. Agora me diga: – Qual  a grande empresa de alimentos que respeita leis ambientais ou trabalhistas? (manchete 1 http://dc.clicrbs.com.br/sc/noticia/2011/08/industria-seara-alimentos-e-condenada-a-pagar-multa-por-dano-ambiental-em-santa-catarina-3458062.html ) (manchete 2

 https://ftiapr.org.br/seara-alimentos-e-processada-em-r-25-milhoes-por-irregularidades-trabalhistas/ ).

Num restaurante é o chef quem leva a fama. É ele quem vai ao salão posar pra foto com clientes “famosos”, posta selfies mostrando o quanto é sorridente e trabalha feliz (mesmo que não perca– e se esforce pra criar, às vezes- uma oportunidade de dar chilique na cozinha). Na maioria das vezes, nessa cozinha a realidade é outra. São cozinheiros trabalhando sob pressão, num ritmo estressante, jornadas de trabalhos longas e horas extras. Tudo isso regado a muito trabalho pesado, calor e falta de reconhecimento dos que estão realmente se beneficiando com o produto desse suor todo. Sem contar no discurso de “deem o máximo de vocês! Nós precisamos que vocês dobrem todas sextas e sábados. Pelo menos no final do mês vai dar pra comprar aquele batom que vocês estavam querendo, um presente pro seu filho… Para o restaurante seria tranquilo pagar um trabalhador extra. Mas a gente quer dar oportunidade de vocês ganharem uma grana a mais”. A profissão de cozinheiro é a 4ª carreira mais esgotante do mundo, de acordo com o site https://www.careercast.com/jobs-rated/jobs-rated-report-2015-ranking-top-200-jobs?page=9). Só perde para repórter de jornal, lenhador e militar. A glamourização, o aumento de atenção e os realitys shows atraíram muita gente para o setor de gastronomia nos últimos anos. No entanto, os salários e as condições de trabalho dos cozinheiros estão longe de serem englobados por essa glamourização dos chefs. Segundo o site Catho (https://www.catho.com.br/profissoes/cozinheiro/), a média salarial de um cozinheiro no Brasil é de R$ 1.280,40. Por, repetindo, longas e exaustivas jornadas.

A cultura do espetáculo também está presente nas cozinhas. Não é à toa que é cada vez mais comum a presença de vidros para que os comensais assistam às preparações sendo feitas e há quem goste de assistir também as broncas e presepadas dos chefs. Na verdade, não sei se gostam, mas que elas ficam mais frequentes quando tem plateia, ficam.

A gastronomia é encantadora. As múltiplas possibilidades de combinações de ingredientes geram pratos incríveis. Ninguém pretende negar a competência dos chefs em criar (e reproduzir) pratos. Parece que nem passa pela cabeça deles, que sem uma equipe de cozinha capacitada e trabalhando em harmonia, não tem restaurante. Por melhor que o chef imagine que seja, como qualquer ser humano e limitado que somos, ele também pode errar (apesar de gritarem por aí nas cozinhas de que chef não erra, não senhor!) ele é um só. E para um restaurante funcionar perfeitamente é preciso uma equipe, liderada de preferência por alguém que se enxergue como um ser humano que como todos os outros, precisam do outro.

 

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