A amnésia coletiva de uma nação: Contaminação por chumbo em Santo Amaro da Purificação e os crimes escondidos na deslembrança do povo brasileiro

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(Foto: Reprodução/TV Globo)

As histórias, sejam de uma pessoa, uma família ou uma nação, são feitas de lembranças e esquecimentos, mas no último caso as memórias esquecidas são muito bem escolhidas. E essas escolhas são perpassadas por diversos interesses que, creio eu, por mais que tentemos, nunca entenderemos por completo. Os setores da sociedade se encontram tão “globalizados” que quando achamos que conseguimos encontrar todas as pontas sempre surge mais uma.

O Brasil possui a sua própria caixinha das deslembranças e ela está cheia de acontecimentos que não deveriam estar lá e hoje eu me coloco na missão de, a partir das minhas próprias memórias (algumas delas que só passaram a existir após essa pesquisa) puxar algumas pontas e reviver nas mentes dos que estão lendo isso o caso da contaminação por metais pesados em Santo Amaro da purificação causada pela COBRAC.

Eu nasci em Santo Amaro e estudei lá por 4 anos, no Instituto Federal da Bahia que fica localizado a 650 metros de distância da fábrica. 2Um número considerável de pessoas da minha cidade (Amélia Rodrigues) estudava lá e todos os dias íamos e voltávamos num ônibus disponibilizado pela prefeitura. Quando íamos por Oliveira dos Campinhos, sempre passávamos em frente às ruínas da fábrica.
Lembro que antes de estudar lá eu tinha uma ideia muito vaga sobre a história da escória, mas assim que passei a ter maior contato, compreendi melhor do que se tratava.

Em 1960, após descobrirem jazidas de chumbo em Boquíra, a Peñarroya, uma subsidiária francesa, instalou a Companhia Brasileira de Chumbo em Santo Amaro que produzia ligas do mesmo material. O seu processo metalúrgico sem nenhuma responsabilidade com o meio ambiente e a população descartou toneladas de material tóxico na atmosfera e isso levou a contaminação e morte da flora, do rio Subaé, dos animais e de centenas de pessoas.

Isso era tudo que eu sabia, mesmo estando tão perto. Como na música de Caetano, eu achava só era preciso “purificar o Subaé, mandar os malditos embora” e eu nunca estive mais enganada. Esse crime não se trata apenas de um rio poluído, se trata também de sonegação de impostos, contrabando, corrupção, genocídio, usurpação de terra, negligência e os acontecimentos e responsáveis são tantos que será necessário dividir por décadas.

Décadas 60 e 70

Como eu havia dito anteriormente, a COBRAC foi instalada na cidade em 1960. Em 1961, começaram a surgir reclamações dos pecuaristas e eles financiaram estudos técnicos que atribuíram à empresa a responsabilidade pela morte do gado e contaminação do meio ambiente. A partir desses estudos, foi pedido o encerramento das atividades da empresa por infringir um decreto que tratava da poluição dos cursos da água e foi negado.

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30 de março de 1967, Matutina, Geral, página 1 (Acervo O Globo)

Em 1967, O Globo já trazia em seus jornais notícias a sobre os malefícios que o chumbo pode trazer ao meio ambiente. Nesse período os debates sobre a poluição estavam fervendo, devido aos gases emitidos pelos automóveis. Em 1969, o jonal veiculou uma matéria entitulada Poluição atmosférica: a morte anda de automóvel onde se faz referência ao chumbo como um metal venenoso, poluente, mas ainda desconhecido no que diz respeito aos seus efeitos em seres humanos.
Isso seria o suficiente para deixar qualquer autoridade responsável em alerta, mas nada foi feito.
No período de um ano ( 1973 a 1974) medições foram feitas em vários pontos no trecho do Rio Subaé que passa pela cidade e os teores de chumbo e cádmio estavam sessenta vezes maior do que o determinado pela Organização Mundial de Saúde. Essas pesquisas deveriam contribuir para a negação da licença de ampliação de produção da Cobrac.

Em abril 1973, o jornal O Globo escreve uma

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03 de julho de 1973, Matutina, Cultura, página 34 (Acervo O Globo)

matéria expondo os benefícios e

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18 de abril de 1973, Matutina, Economia, página 92 (Acervo O Globo).

versatilidade do chumbo. Em julho, 4 meses depois, escreve sobre como em uma “perfeita ação integrada” da Boquira (empresa responsável pelas jazidas de chumbo em cidade de mesmo nome) e a Cobrac “ realizam um trabalho de maior benefício” para a comunidade, o Estado e o País. O texto é concluído afirmando que o conceito da empresa por si só traz característica que a fazem crescer cada vez mais.

Exatamente um ano depois, em 3 de julho de 1974, em página de mesma numeração na qual foi publicada o texto anterior, O Globo anuncia a ampliação do Grupo Boquira-COBRAC.

Em 1975, o médico da empresa, Ademário Galvão Spínola, fez uma dissertação de mestrado de título Variáveis epidemiológicas no controle do saturnismo. Ele estudou um grupo de funcionários da Cobrac e a intoxicação pelo chumbo desse grupo era mais elevada que a do “Tiro de Guerra” de Santo Amaro.

Agora c7omeça a parte mais interessante… Ao analisar o acervo de jornais O Globo, encontrei três comunicados emitidos pelo Grupo “Plumbum-Cobrac-Boquira”. O primeiro em 1975, o segundo em 1976 e o último em 1977. Em todos, a mineradora se isenta de acusações realizadas contra a ela, porém não especifica quais são e não consegui encontrar em nenhum jornal do acervo O Globo notícias sobre o teor das denúncias.

Ao direcionar as minhas pesquisas para a Biblioteca Nacional Digital, encontrei no jornal Opinião, uma mídia alternativa do Rio de Janeiro opositora a ditadura, uma série de três notícias veiculadas nos dias 19, 21 e 28 de novembro de 1975, escritas por Francisco Alexandria, acusando o Grupo Penarroya de assassinato, roubo de terras, sonegação de impostos, contrabando e corrupção eleitoral em Boquira e Santo Amaro. Um dos comunicados datado em 22 de novembro publicados n’O Globo, faz referência a acusações publicadas em 21 de novembro, o que me leva a crer que são essas que citei.

(Leia aqui a “O feudo do truste Penarroya”, denúncia detalhada).

Em 1976 o jornalista autor da denúncia passou um tempo preso aqui na Bahia.

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Diário do Congresso Nacional, página 73

Em 1977, a câmara recebe a denúncia de sonegação e tráfico de influência feita a mineradora. Em 25 de agosto do mesmo ano, saiu uma notícia n’O Globo afirmando que a mineradora negava as acusações, mas que em depoimento a CPI que a invesigava confessou várias irregularidades e Michel Euvert disse que houve problemas para juntar a empresa Boquira ltda. ao Grupo francês, “mas que foram superados através de entendimentos com então governador Juraci Magalhães.”

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20 de junho de 1978, tribuna da imprensa, página 9

E como era de se esperar de uma investigação em plena ditadura militar, o acusador acabou sendo preso e perseguido.

Década de 80

10Vou começar a década de 80 com uma manchete do O Globo de 1978 porque, finalmente, as coisas começam a se mostrar mais próximas da realidade. A tentativa de progresso pela industrialização acelerada não era nada além de cilada.

A população se enganou facilmente porque indústria representa geração de novos empregos, mas a questão é, a troco de que? O norte global não quer mais saber de empresas que causam tantos danos ao meio ambiente e a comunidade a sua volta e as jogam para os países do sul global. Como fica evidente em um trecho dessa mesma reportagem:

“Zona de industrialização rápida, o recôncavo baiano está se transformando em um laboratório vivo, em que testam sobre as populações os efeitos dos lançamentos intensos de efluentes químicos.”

É em 80 que começam a surgir diversas denúncias por meio da mídia, conhecimento científico sobre os efeitos que a contaminação de metais causa na população. É também nesse momento que o Governo da Bahia começa a tomar as primeiras providências. O estado decreta que a Cobrac realoque todas as famílias num raio de 500 metros, instale filtros em todos os sistemas por onde escoam escória e construam uma chaminé de 90 metros.

A Cobrac só construiu a chaminé e em 1985 assumiu que doou escória do processamento de chumbo para prefeitura pavimentar a cidade e doou os filtros usados para as famílias usarem como cobertor, toalha de mesa e tapete.

Década de 90

Em 1993, a Cobrac fecha às portas, porém os problemas estão longe do fim. A mineradora fecha sem nenhum aviso e vai embora deixando 500 toneladas de resíduos a céu aberto, no pátio da empresa e sem nenhum isolamento em torno da área.

No final da década, iniciou-se um projeto que visava remediar as áreas degradadas pela COBRAC em Santo Amaro. A proposta reconhecia a escória do chumbo na cidade como uma jazida e avaliou a possibilidade de gerar receita a partir do reprocessamento dos resíduos e também previa a retirada dos mais de 54 mil metros cúbicos da pavimentação urbana e os outros 3 mil presente em pátios escolares, terrenos baldios e até em quintais, mas a licença ambiental foi negada.

Século XXI

Em 2010, Carolina Guerra avaliou as diferentes concentrações de chumbo em dentes decíduos recolhidos em Santo Amro, Ribeirão Preto e Mato Leitão, regiões com diferentes históricos de contaminação ambiental e as amostras de Santo Amaro se mostraram consideravelmente superiores às outras.

Essa reportagem do Fantástico de 2007 mostra um pouco da situação mais recente da população santamarense:

 

Eu lembro que minha escola não ficava nem a 10 minutos de distância da Cobrac e era recorrente entre os estudantes piadas sobre a água ser “chumbada” e sobre o jambo das árvores em volta do pavilhão e mesmo assim, bastava o jambeiro ficar carregados que nós levávamos frutas até para casa. Mais próximo ainda das ruínas da fábrica havia centenas de casas, família convivendo naquele lugar como se o crime nunca houvesse existido. Também, um pouco mais próximo, havia um acampamento de ciganos, em frente às ruínas havia um posto de gasolina no lado oposto da rua e mais perto, do outro lado do trilho do trem, tinha um campinho de futebol de terra batida.

Sabendo que ainda 50 anos depois a instalação da Cobrac, pessoas contaminadas estão sendo encontradas, nenhuma construção deveria ser levantada tão próxima daquela região. E após tudo que foi dito sabemos exatamente quem são os culpados:

A principal criminosa – Penarroya/Plumbum

O governo corrupto que permitiu que tantas infrações fossem realizadas em prol de uma industrialização fracassada e abandonou a população a própria sorte.

A grande mídia que se empenhou em transmitir os interesses dos empresários e não cumpriu o seu papel em informar a população dos perigos que estavam correndo.

Por último e não menos importante, a comunidade cientifica que desenvolveu dezenas de artigos que, em sua maioria, não proporcionaram nenhum retorno a população santamarense.

A COBRAC está ao, mas o crime ocorrido em Santo Amaro continua vivo!